Bispos, padres e mestres cristãos
“As fontes para o conhecimento desses temas são variadas. A despeito da descoberta de escritos de grupos específicos, como os gnósticos ou mesmo em Qumran, continua a predominar o estudo das fontes gregas e latinas que viriam a ser dominantes. Depois do Edito de Milão (313) que permitia o culto cristão e, mais ainda, a partir da simbiose entre o poder imperial e a Igreja cristã, como no caso notável do Concílio de Niceia (325), a narrativa passa a ser feita de um ponto de vista teleológico. Deste modo, mesmo para os séculos iniciais do Império Romano, surgiam conceitos como Igreja, de um lado, e grupos heréticos, de outro lado. Neste sentido, muito se estudou e se estuda sobre esses hereges, mas a leitura a contrapelo é algo recente, ainda. O próprio vocabulário carrega essas marcas, já que heresia é um conceito usado para desqualificar os seguidores de vertentes não dominantes e, neste sentido, perdedoras. Sintomático dessa nova situação conflitiva está na mudança semântica, já que heresia significava apenas “tomada de posição”, “compreensão”, termos neutros, sem conotação negativa. Heresia adquirianovo sentido, que restaria, em diferentes circunstâncias históricas, conosco até hoje. Em paralelo a essas desavenças que nós diríamos intestinas, mas que podia parecer uma disputa entre o certo e o errado, entre seguir a Deus e a ele se opor, havia o crescente antijudaísmo, também de consequências seculares e profundas. Na mesma linha, observe-se o confronto com o politeísmo, reativo, de início, e cada vez mais violento, a partir da associação entre o poder imperial e a hierarquia cristã. Ao final do século IV, não só o império proibia outros cultos, como movimentos de massa destruíam templos e passavam a executar indivíduos ou grupos de pessoas.
Neste contexto, estudiosos brasileiros têm contribuído para tratar de diversos dos desafios historiográficos. Primeiro, há que destacar a ousadia e vanguardismo historiográfico, ao tratar desses temas no âmbito histórico e historiográfico, para além de campos como a Teologia ou mesmo as Ciências da Religião. A contribuição brasileira insere-se nas inquietações atuais da Kulturkampf(guerra cultural) em curso, entre laicidade e valores de denominações específicas, mas também em meio a conflitos internos às diversas vertentes cristãs. No primeiro caso, a guerra cultural pode levar à limitação docomportamento, e no limite da vida mesma. No segundo, além disso há o estigma da heresia. São questões presentes em diferentes lugares do mundo, mas a experiência brasileira, em diversos aspectos, inspira, de modo direto e particular, as pessoas estudiosas destas paragens a refletir, de modo crítico, sobre esses temas no passado. Neste aspecto, os primeiros séculos cristãos são mesmo capitais, tanto como tema de pesquisa, como por serem a grande inspiração e tema de confronto entre as denominações. Este volume representa bem a diversidade de reflexões brasileiras sobre tema de maior relevância, no presente e no passado (e vice-versa): a liderança de padres, bispos e mestres.“
Pedro Paulo Funari